AUTONOMIA E ANGLICANISMO


Victor Hugo

         O presente ensaio são notas (perspectivas) a respeito das conturbadas relações entre Estado, na figura do rei, e Igreja, na figura do Papa, na Inglaterra Medieval. Chamamos aqui de “Inglaterra Medieval” o período posterior a Agostinho de Cantuária (século VI) e anterior ao Ato de Supremacia de Henrique VIII (século XVI). A priori, defendemos a ideia de que, apesar destas relações serem complexas e presentes tanto na Ilha quanto no Continente, acreditamos que a Inglaterra sempre defendeu sua autonomia frente às ingerências romanas.
         De início é importante dizer que a relação Estado-Igreja não pode ser tomada universalmente, mas é condicionada pela sua região geográfica: ela se dá de modos distintos variando de país para país. Pesquisas apontam alguns modelos existentes: [a] a completa oposição do Estado à Igreja; [b] o modelo “muro de separação”, cuja a separação é levada a sério tanto na teoria quanto na prática, em especial na educação; [c] a coexistência da “separação” e da “permissão”, a qual Governo não pode nem avançar nem obstruir a Igreja; [d] separação com algum tipo de cooperação, cujo o papel do governo é cuidar, por exemplo, das coletas e dos dízimos para uma equiparação monetária; [e] a unidade formal entre Igreja e Estado na forma de uma Igreja oficial, ainda que os objetivos sejam distintos, ambos desejam o bem-estar e a salvação de seus cidadãos; [f] e a teocracia, convergência entre Igreja e Estado (NIEUWENHUIS, 2012).
         Se se olha as relações ocorridas entre Estado e Igreja ocorridas na Inglaterra Medieval, é notório a existência do modelo teocrático. Contudo, o grande problema da Inglaterra não são as relações entre Estado e Igreja propriamente ditas, mas quem deve ser “o cabeça da Igreja”. Este problema ocorre porque, gradualmente no Medievo, o papado – pertencente ao Sacro Império Romano Germânico – empenhou-se em ampliar seu poder teocrático tanto do ponto de vista religioso quanto do ponto de vista secular e, ademais, para além dos territórios imperiais. Quando Lutero, em 1517, propôs suas 95 teses, ele não apenas estava questionando a mediação da Igreja Católica entre Deus e os homens, mas também ameaçando o governo imperial bem como a hegemonia da teocracia romana (LEIBFRIED; WINTER, 2014)
Em outras palavras, o modelo papal assumido pela Igreja Católica durante o Medievo (Cristandade)[1] imprimia as mesmas características que o governo secular, isto é, uma monarquia feudal vinculada necessariamente aos territórios geográficos. Entretanto, tal poder papal, assumido também como poder civil, não respeitava estes limites territoriais intrínsecos a este modelo – que deveria ser o território compreendido pelo Sacro Império Romano-Germânico –, mas, pela sua condição religiosa (catolicidade), cria que sua gerência deveria ter esta mesma extensão.
Esta política “colonizadora”, na Inglaterra, começa por volta do século VI quando o então papa Gregório Magno, conhecido por toda a Igreja Ocidental como “Vigário de Cristo” (e, portanto, deveria ser obedecido) envia Agostinho à Inglaterra para reecristianizá-la. Agostinho é recebido pelo próprio rei Etelberto que submeterá à nova religião. Outra marca desta inicial expansão foi o envio do “palio” pelo papa Gregório a Agostinho, conferindo-o o representante direto do papa e autoridade máxima sobre os demais, nos termos de Oliveira (2000, p.20)
Uma crítica que se faz a Gregório, com relação a sua orientação pastoral para a Inglaterra, foi quando ele concedeu a Agostinho a autoridade sobre os bispos britânicos que, porventura, viesse a encontrar, os quais, com as limitações já mencionadas em capítulo anterior, tinham mantido acesa a chama da fé, embora numa região restrita (oeste), enquanto o resto do país tinha voltado ao paganismo. Talvez parecesse natural ao papa ignorar os “direitos” desses poucos, indistintos e distantes prelados. Mas isto foi um erro, pois os bispos britânicos ressentiram-se do completo desrespeito sobre eles, acrescido ao fato de que Agostinho tinha pouco tato para lidar com quem tivesse dificuldade de se submeter a ele, o que foi fatal para este processo de aproximação. Por tudo isso, os bispos britânicos se recusaram a cooperar com a Missão Romana que tinha vindo, com prioridade, para evangelizar os odiados invasores e, depois, submeter toda a Igreja Cristã, lá existente, à Roma. A Igreja Britânica tinha sérios problemas, mas, também, era merecedora de consideração. Esta consideração foi ignorada “a chance de uma Igreja unida na Britânia foi perdida, por um século”
Deste modo, dava-se início ao processo de construção da autoridade papal sobre a Inglaterra que entrará em conflito com os interesses dos reis ingleses.
Apesar de neste período (século VI) a autoridade papal ter sido consolidada, pelo contrário, a autoridade civil demoraria a se estabelecer. Foi somente no século IX, com o rei Alfred Wessex, que a unidade política civil começou a aparecer. Esta autoridade, de algum modo, teve que lidar com a autoridade papal plenamente consolidada. Contudo, ainda que tardia e antes mesmo de se consolidar, a autoridade civil sempre manteve um elemento celta, qual seja, a reclamação da independência frente a missão romana. Este elemento celta, de qualquer modo, contribuiu para as relações entre os futuros reis ingleses e o papa não fossem tão simples (OLIVEIRA, 2000).
Em vias de considerações finais, este é um assunto que não tem como esgotar nestas notas, haja vista: [a] o complexo processo de cristianização das Ilhas Britânicas; [b] o processo de colonização romano; [c] as onerosas relações de assimilação e ruptura dentro da mentalidade celta, angla e saxã. Todos estes fatores, acrescido de um longo período histórico, evidenciam que: [a] o modelo do papado assumido pela Igreja Ocidental no Medievo apresentava uma contradição interna, já que ela pretendia assumir a monarquia feudal como modelo de governo, mas não queria aceitar seu vínculo natural com a territorialidade. Isto é, se o papa era o Imperador ou a ele estava ligado, deveria aquele respeitar os limites territoriais próprios deste modelo de governo; [b] embora a consolidação e a colonização ideológica da autoridade papal fosse um elemento aceito nas Ilhas Britânicas, as raízes celtas jamais foram totalmente subsumidas; [c] os conflitos existentes entre os reis ingleses e o papa evidenciaram, não obstante não serem exclusividade inglesa (já que a França e o Sacro Império também possuíam suas divergências), que a autonomia sempre foi um valor inalienável desde os antigos britânicos.
Estas características, com efeito, delineou as mudanças ocorridas na Inglaterra durante o Renascimento bem como a própria Reforma Inglesa. Esta não estava tão preocupada com a discussão teológica mais do que estava com a ideia de autonomia. Para os Ingleses, a relação entre o Estado e a Igreja não é a questão central, mas o modo como esta deve ser gerida. Desde seu processo de consolidação enquanto nação moderna, a Inglaterra reclamou para si a sua autonomia, por mais que a fé cristã tenha sido bem aceita e até oficializada esta deveria também ser uma Igreja Nacional. A autonomia é tal, na visão de mundo inglesa, que os conflitos por ela não cessaram com a ruptura com Roma, mas perdurou com a colonização na América do Norte. Pode ser por isto que até hoje, a grande característica das Igrejas de tradição anglicana primem, até hoje, pelo modelo de Províncias independentes.
  



REFERÊNCIAS

ESBECK, C. H. Dissent and Disestablishment: The Church-State Settlement in the Early American Republic, 2004. [online]. Disponível em: https://blog.lrrc.com/churchstate/wp-content/uploads/2014/12/EsbeckDissent.pdf Acesso em 06/05/2017.

LEIBFRIED, S.; WINTER, W. Ships of Church and State in the Sixteenth-Century Reformation and Counterreformation: Setting Sail for the Modern State. In: Max Weber Lecture Series. Florença: Instituto Universitário Europeu, 2014. Disponível em: file:///C:/Users/user/Downloads/MWP_LS_2014_05.pdf Acesso em 06/05/2017.

NIEUWENHUIS, A. J. State and religion, a multidimensional relationship: Some comparative law remarks. I.Con (21012), v. 10, n. 01, 153-174. Disponível em: https://www.ivir.nl/publicaties/download/ICON_2012_1.pdf Acesso em: 06/05/2017.    

OLIVEIRA, V. L. S. de. História do Anglicanismo. [online] Disponível em: http://www.regiao1.ieab.org.br/rps/ed%20crista/historia.do.anglicanismo.pdf Acesso em 06/05/2017.







[1] “This pattern of dual authority was inchoate when Imperial Rome first legalized the Christian church in 313 AD with the Edict of Milan.12 Emperor Constantine’s directive to tolerate Christianity, which was soon followed by instances of official favoritism, eventually gave way to Emperor Theodosius I’s edicts in 380−38113 establishing the Christian church to the exclusion of all other religions. This transition period, however, was not without conflict between the two powers” (ESBECK, 2004, p.07).

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