DEUS NÃO TEM DÓ DE GASTAR!
Introdução
A reflexão de hoje apresenta um dos temas mais
tradicionais e ao mesmo tempo um dos mais polêmicos dos evangelhos: a dita ‘multiplicação
dos pães’. E então, Jesus multiplicou ou não os pães? Para piorar a situação, a liturgia apresenta outro
texto com o mesmo problema: II Reis 4, 42-44. Isto, de antemão, mostra que
Jesus não foi tão original assim, já que o mesmo ocorre com o profeta Eliseu. E
agora? Será que o que o texto de João apresenta é apenas um plágio do texto de II Reis?
Antes de fazer qualquer tipo de julgamento passemos a análise dos textos.
O livro de Reis (seja o livro I, seja o livro II),
pelos estudos exegéticos, é complexo, haja vista que, muito provavelmente,
passou por muitas mãos até chegar a sua redação final. Eles, os dois livros dos
Reis, procuram relatar crônicas dos reis de Israel e Judá, mas também
apresentam, inseridos nestas, fatos ligados aos profetismo. O texto de II Rs 4,
42-44, sugerido para a liturgia de hoje, é um fragmento que faz parte do
chamado “ciclo de Eliseu”. Eliseu é uma personagem que aparece no livro dos Reis,
é identificado como um profeta que sucedeu a Elias e, segundo os textos
sagrados, foi responsável por muitos milagres. Não seria, portanto, estranho a
liturgia fazer esta relação entre Jesus e o profeta Eliseu.
O fragmento escolhido para liturgia está colocado no
final do capítulo 4 de II Reis e não tem nenhuma relação aparente com o que vem
antes e nem depois. É um fragmento provavelmente interposto neste capitulo,
pois, do quarto ao sexto, são relatados os milagres de Eliseu. Nos três últimos
versículos do quarto capítulo de II Rs (42-44), Eliseu, tal como Jesus, “multiplica
os pães”.
Por outro lado, o evangelho apresenta a versão joanina
da multiplicação dos pães (já que este relato aparece também nos sinóticos). Ela
apresenta este fato muito mais como um dos sete sinais contidos neste livro do
que como um milagre. O capítulo sexto faz parte do chamado “Livro dos Sinais”
que junto com o Prólogo e o Livro da Paixão formam o evangelho. A multiplicação
dos pães é o quarto sinal e está junto com o quinto, que é o caminhar sobre as águas.
Assim, para compreender a “multiplicação dos pães” deve-se compreender também o
“caminhar sobre as águas”.
Teologia
Feita esta introdução, pode-se agora aprofundar os
textos para buscar a mensagem. Os dois textos, Reis e o João apresentam o mesmo
elemento: a multiplicação dos pães. Porém, olhando mais de perto, ambos
intentam emitir muito mais o significado teológico deste fato, do que o fato em
si. Tanto Eliseu quanto o Jesus da tradição joanina apresentam o fato da multiplicação
como uma “revelação”. Em II Reis, o autor narra o profeta argumentando ao servo
que seu pedido é um mandato do Senhor (II Rs 4,43); em João, o autor explica
que o que havia acabado de ocorrer era um “sinal” e, por meio deste, muitos reconheceram
Jesus como Profeta (Jo 6,14). Antes de prosseguir, é importante deter um pouco
sobre esta ideia de sinal em João.
A palavra sinal, do grego semeion, quer dizer aquilo que “prepara para...” ou está “sinalizando
outro”. A ideia é que sinal é “algo que aparece, mas com intenção de mostrar
outro”. No caso da tradição joanina, os sinais de Jesus são fenômenos que
pretendem revelar o Pai. O Jesus de João é consciente de sua missão como
enviado do Pai (Jo 6,6) e o que ele faz não é por merecimento próprio, e sim
como revelação daquele que o enviou. Portanto, os sinais são os modos como a tradição
joanina compreende a revelação da imagem
de Deus por meio de Jesus e não necessariamente milagres. Os sinais são as
imagens que o rosto de Deus adquire no evangelho a fim de que o povo conheça o
Pai. É um modo humano de dizer quem é o Deus de Jesus.
Com estas explicações, tanto Eliseu quanto o Jesus de
João são instrumentos do texto para a revelação de Deus. O texto, em primeira mão,
não está preocupado com milagres, ou com coisas sobrenaturais. E a tradição joanina
denuncia muito bem essa preocupação transcendente quando relata: “Uma grande multidão
o seguia, porque tinham visto os sinais que ele operava nos enfermos” (Jo 6,2).
A preocupação da liturgia de hoje, com efeito, parece querer garantir que, por
meio de Eliseu e do Jesus de João, Deus
se revela. E como se dá esta revelação? Por meio de milagre?
Ambos os textos, pelo visto, submetem uma preocupação
básica e originária: a revelação da imagem de Deus, e, para tal, usam um
exemplo simples que foi intitulado pela tradição de “multiplicação dos pães”. Porém,
o que é mais interessante é que em nenhum momento os dois textos falam de “multiplicação”
ou de intervenção de Deus sobre os alimentos. Nem Eliseu, nem Jesus dizem: multiplicai
os alimentos! Ambos, na verdade, falam de “distribuição” e de “sacia” (sobra).
Ora por que então falamos que estes textos se referem ao milagre de multiplicação?
A resposta é simples: estamos acostumados a querer ver Deus na tempestade, como
o profeta Elias. Estamos tão acostumados com as tradições judaicas de um “Deus
Todo-Poderoso” que aparece na Tempestade que um “Deus Amor” que aparece na
Brisa, nós não reconhecemos. Não queremos um Deus fraco!
Este é o ensinamento dos dois textos: se Deus se revela, que imagem teria este
Deus? A imagem que ambos pretendem passar, primeiramente, não é a imagem do
Deus milagreiro, da multiplicação, mas da distribuição e da sacia. Esta imagem,
por seu turno, poderia ser comprometida pelo quinto sinal joanino. Depois de
desconstruirmos a imagem do Deus do impossível, vem o Jesus de João, no verso
dezenove e complica nossa vida. Logo depois da distribuição dos pães, João vai
e me coloca um Jesus “andando sobre o mar” se exibindo para os discípulos.... E
agora? Será que o Deus do Impossível está certo e o Deus dos fracos, como diz
Nietzsche, foi uma terrível invenção paulina para nos ferrar?
Mais uma vez é importante compreender o texto. O quinto
sinal joanino aparece quando os discípulos entram em uma barca e se encontram
em uma situação de “medo”. Estão vivendo um momento de turbulência. O que o
Jesus de João diz quando ele aparece, “todo todo”, se mostrando para os
discípulos? “Sou eu, não tenham medo”. (Jo 6,20) Ora, João mais uma vez, desconstrói
a ideia de um Deus Todo-Poderoso. A resposta de Jesus remete ao Deus que fala
com Moises na Sarça – Eu sou – e logo
em seguida, pede que não tenham medo. Este é o sinal: mostrar que o Deus
libertador do Êxodo é o mesmo que se revela em Jesus. Assim como medo da escravidão
foi suprimido pela libertação de Javé, o medo dos discípulos deve ser suprimido
pelo Abbá!
A analogia é clara, pois o capítulo sexto de João é
uma memória da libertação do Êxodo. A distribuição dos pães feita por Jesus,
relata o autor, acontece “poucos dias antes da festa da Páscoa” (Jo 6,4). Ora o
autor já está fazendo memória da entrega de Jesus em sua última ceia, a qual é
também celebrada a libertação do povo judeu da escravidão. Neste sentido, o
autor quer mostrar que a celebração da libertação do povo no Egito, do Deus que
se identificou a Moises como Eu sou, é
a mesma da última ceia, cuja revelação se dá em Jesus por meio da distribuição dos
pães na ultima ceia. O Deus de Moisés, o Eu
sou, é o Deus de Jesus, o Sou eu.
A ceia da libertação é a ceia da distribuição. O problema é que nossa imagem do
Deus Todo-Poderoso nos impede de ver que o sinal está na revelação e não no
caminhar sobre as águas.
Mensagem
Mais uma vez, O Deus Amor é revelado. E este Deus Amor
é revelado nestes textos com duas ideias básicas: distribuir e saciar. A revelação
que o autor de Reis e o autor de João querem garantir é que o Senhor é o Deus
da distribuição e da saciedade. O que Deus faz, faz com amor para todos, sem distinção e sem pudor de quantidade. O
amor de Deus é distribuído com saciedade. Ninguém que faz a experiência do Deus
de Jesus fica sem sua graça e esta é dada em abundância. Ambos os textos deixam
claro que nosso Deus não tem dó de
gastar! Ele não se alia à lógica da economia de hoje, cuja recessão se dá pelo
simples prazer dos bancos e dos capitalistas acumularem riquezas. A economia
capitalista cria crises pelo simples medo de que seus concorrentes ultrapassem
seus bilhões acumulados, dia pós dia. E quem paga essa brincadeira de gato e
rato entre os mega-concorrentes bilionários do capital são as classes que não são
donas dos meios de produção. Mera ilusão acharmos que votando em Bolsanaro,
Ciro Gomes ou Alkimin estaremos conservando nosso patrimônio medíocre de
pequeno burguês!
Há quem quer viver com Deus experiências capitalistas.
Quer barganhar, quer acumular, criar crises para que Deus se curve aos desequilíbrios
de nossos mercados espirituais. Quer restringir a graça de Deus para aqueles
que, segundo eles, estão em débito. Muita ilusão achar que a graça de Deus
segue a nossa medíocre lógica do capital. Pior ainda quem acredita que as religiões
conseguem ser melhor que Deus.... Muitos acreditam que as religiões são verdadeiras
bolsas de valores, as quais calculam a alta e baixa da graça de Deus por meio
de ações que são vendidas nas empresas chamadas Templos.
Eliseu e o Jesus de João hoje revelam um rosto de Deus,
talvez, mais próximo de Deus: o Deus da distribuição e da saciedade. Deus não precisa
de nós, não precisa de liturgia, não precisa de Igreja, não precisa de
mediadores, muito menos de banqueiros. Ele simplesmente distribui, sem pensar
em economia, sem pensar se vamos ou não corresponder ou se a distribuição fará
a inflação aumentar. Quantas ideologias políticas ficaram ofendidas quando os
modelos de política da esquerda abriram os cofres dos bancos para créditos populares....
Somos saciados de Deus todos os dias, pois ainda estamos vivos. Ainda temos
natureza e oportunidades para crescer. Se muitos não gozam desse privilégio, a
culpa não é de Deus, é porque aprendemos com o capitalismo: queremos privar os
outros de toda saciedade divina.
Que o Deus de Eliseu e de Jesus nos ensine a
distribuir e saciar a todos, sem querer transformar em donos da graça nem fazer
de Deus nosso capital privado. Que a dita passagem da multiplicação dos pães
seja conhecida como: a passagem da distribuição dos pães!
Amém!
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